MUDANÇA
Na planície avermelhada os
juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia
inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como
haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três
léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros
apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais
novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio,
o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda
de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais
velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta.
Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos.
Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como
isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de
manchas brancas que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos
em redor de bichos moribundos.
- Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o
coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca
aparecia-lhe como um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o.
Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o
vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.
Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos, fazia
horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo
passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas
ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá
Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns
sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no
cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos
encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano
teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou a
espingarda a Sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os
bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá
Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição
gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num silêncio
grande.
Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio.
Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça:
a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida.
Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança
disto.
Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a
esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz saiu-lhe rouca,
medonha. Calou-se para não estragar força.
Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma
ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo que não viam sombra. Sinhá Vitória
acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-os com molambos. O menino
mais velho, passada a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a
cabeça encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando abria os olhos, distinguia
vagamente um monte próximo, algumas pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia
foi enroscar-se junto dele.
Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, o
chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada,
tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham
fugido.
Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos
dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as
pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o focinho de
Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava
proveito do beijo.
A fazenda renasceria e ele, Fabiano, seria o vaqueiro, para bem
dizer seria dono daquele mundo.
Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda de
pederneira, o aió, a cuia de água e o baú de folha pintada. A fogueira
estalava. O preá chiava em cima das brasas.
Uma ressurreição. As cores da saúde
voltariam à cara triste de Sinhá Vitória. Os meninos se espojariam na terra
fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores. A catinga
ficaria verde.
Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia
ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos.
Depois iria dormir.
Disponível
em http://www.diciomario.com.br/vidas_secas_101.html Acesso em 15 set. 2013.
1) Que personagens aparecem no
capítulo “Mudança”?
Resposta comentada: Fabiano,
Sinhá Vitória, cachorra Baleia, o menino mais velho e o menino mais novo, o papagaio.
2) Em que espaço os personagens
vivenciam os fatos narrados?
Resposta comentada: Na
caatinga ou sertão.
3) Em relação do foco
narrativo, o narrador conta a história em 1ª ou 3ª pessoa? Justifique sua
resposta com um fragmento do texto.
Resposta comentada: 3ª
pessoa, pois o narrador não é um dos personagens da história. Alguns fragmentos
possíveis:
“O menino mais velho pôs-se
a chorar, sentou-se no chão.”
“Tinham deixado os caminhos,
cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama
seca e rachada que escaldava os pés.”
“A fazenda renasceria e ele,
Fabiano, seria o vaqueiro, para bem dizer seria dono daquele mundo.”
4) Nos romances, é muito comum
o enredo não ser linear, ou seja, não obedecer a uma ordem temporal fixa,
cronológica, em que um fato se sucede ao outro. No capítulo “Mudanças”, o
narrador faz um recuo no tempo e volta a acontecimentos anteriores aos fatos
que está narrando. Transcreva do texto uma passagem que exemplifica um
retrocesso do narrador, ou seja, um fato que aconteceu em um momento anterior
ao momento em que está narrando as ações para o leitor.
Resposta comentada:
“Ainda na véspera eram seis
viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde
haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e
por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos
do amigo, e não guardava lembrança disto.”
5) No trecho “O pirralho não se
mexeu. Fabiano desejou matá-lo.” Por que esse desejo do vaqueiro não se
concretizou? Explique.
Resposta comentada: Porque
Fabiano sabia que o filho não era culpado pela sua desgraça, pela seca.
6) Considerando a estrutura da
narrativa, dividida em apresentação ou exposição, complicação, clímax e desfecho,
responda: a que parte do romance Vidas Secas pertence o capítulo
“Mudança”? Justifique.
Resposta comentada:
Trata-se da apresentação, uma vez que as circunstâncias da trama estão sendo
apresentadas nesse capítulo e, por isso, ele é o primeiro. O narrador apresenta
os personagens, o tempo, o espaço, faz a descrição desses elementos e introduz
as primeiras ações vividas pelas personagens.
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