CADEIA
Aí certificou-se novamente de que o querosene estava batizado e
decidiu beber uma pinga, pois sentia calor. Seu Inácio trouxe a garrafa de
aguardente. Fabiano virou o copo de um trago, cuspiu, limpou os beiços a manga,
contraiu o rosto. Ia jurar que a cachaça tinha água. Por que seria que seu
Inácio botava água em tudo? perguntou mentalmente. Animou-se e interrogou o
bodegueiro:
- Por que é que vossemecê bota água em tudo?
Seu Inácio fingiu não ouvir. E
Fabiano foi sentar-se na calçada, resolvido a conversar. O vocabulário dele era
pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com algumas expressões
de seu Tomás da bolandeira. Pobre de seu Tomás. Um homem tão direito sumir-se
como cambembe, andar por este mundo de trouxa nas costas. Seu Tomás era pessoa
de consideração e votava. Quem diria?
Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente
no ombro de Fabiano:
- Como é camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro? Fabiano
atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás
da bolandeira:
- Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É
conforme.
Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e
mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava
pouco, desejava pouco e obedecia.
Atravessaram a bodega, a corredor, desembocaram numa sala onde
vários tipos jogavam cartas em cima de uma esteira.
- Desafasta, ordenou o polícia. Aqui tem gente.
Os jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado
amarelo pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se
enrascou. Fabiano encalacrou-se também. Sinhá Vitória ia danar-se, e com razão.
- Bem feito.
Ergueu-se furioso, saiu da sala, trombudo.
- Espera aí, paisano, gritou o amarelo.
Fabiano, as orelhas ardendo, não se virou. Foi pedir a seu Inácio
os troços que ele havia guardado, vestiu o gibão, passou as correias dos
alforjes no ombro, ganhou a rua.
Repetia que era natural quando alguém lhe deu um empurrão.
Outro empurrão desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o
soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa.
Mexeu-se para sacudir o chapéu de couro nas ventas do agressor. Com uma pancada
certa do chapéu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e
as pessoas em roda e moderou a indignação. Na catinga ele às vezes cantava de
galo, mas na rua encolhia-se.
- Vossemecê não tem direito de provocar os que estão quietos.
- Desafasta, bradou o polícia.
E insultou Fabiano, porque ele tinha
deixado a bodega sem se despedir.
- Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê esbagaçar
os seus possuídos no jogo?
Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de
puxar questão. Não achando pretexto,
avizinhou-se e plantou o salto da reiuna em cima da alpercata do vaqueiro
- Isso não se faz moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que
mole e quente é pé de gente.
O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e
xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da
cidade rodeava o jatobá.
- Toca pra frente, berrou o cabo.
Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem
compreender uma acusação medonha e não se defendeu.
- Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano.
Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão
bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe
um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na
fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto,
rosnando:
- Hum! hum!
Disponível em http://www.diciomario.com.br/vidas_secas_101.html
Acesso em 16 set. 2013.
Vocabulário
Reiúna: adj. e s.f. Diz-se de, ou certa
espingarda curta ou fuzil.
Alpercata: espécie de calçado, cuja sola se ajusta ao pé por meio de tiras de
couro ou de algum tecido.
Gibão: vestimenta de couro vestida pelos
vaqueiros.
1) Desde o primeiro capítulo de “Vidas Secas”, você deve ter se
deparado com várias palavras desconhecidas. Entretanto, é possível deduzir o
significado de muitas delas ao considerar o contexto em que aparecem. A partir
disso, aponte os possíveis significados dos termos destacados nos fragmentos a
seguir. Uma dica: procure voltar ao texto e ler o parágrafo onde o termo se
encontra. Assim, facilita a identificação do seu significado.
a) “Atravessaram a bodega, a corredor, desembocaram numa
sala onde vários tipos jogavam cartas.”
Resposta comentada: entraram, adentraram, alcançaram, chegaram.
b) “- Desafasta,
ordenou o polícia. Aqui tem gente.”
Resposta comentada: afasta, saia do caminho, abra espaço.
c) “Sinha Vitória ia danar-se, e com razão.”
Resposta comentada: irritar-se, zangar-se.
d) “Com uma pancada certa do chapéu de couro, aquele tico de gente
ia ao barro.”
Resposta comentada: cairia ao chão, tombaria.
e) “A chave tilintou na fechadura...”
Resposta comentada: balançou e
produziu som, fez barulho.
2) Você deve ter percebido que o fragmento do capítulo “Cadeia”
traz algumas expressões bastante populares utilizadas na linguagem coloquial,
aquele nível de linguagem que usamos com nossos amigos e familiares, em
situações que não exigem formalidade. Observe os trechos transcritos a seguir e
explique o significado de cada termo destacado, considerando-se o contexto em
que aparecem.
a) Aí certificou-se novamente de que o querosene estava batizado
e decidiu beber uma pinga, pois sentia calor.
Resposta comentada: Acréscimo de água ao querosene para aumentar o
lucro nas vendas.
b) Tinha muque e substância, mas pensava pouco,
desejava pouco e obedecia.
Resposta comentada: Músculo.
c) Na catinga ele às vezes cantava de galo, mas na
rua encolhia-se.
Resposta comentada: Mandar, ser valente, comandar.
d) - Lorota, gaguejou o matuto.
Resposta comentada: Bobagem, conversa sem fundamento, mentira.
e) Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que
o arremessou para as trevas do cárcere.
Resposta comentada: Tapa, empurrão, ato violento.
3) O capítulo “Cadeia” conta como
aconteceu a prisão de Fabiano. Leia o capítulo novamente, identifique os
elementos dessa parte da narrativa e preencha o quadro seguir.
Resposta comentada: Personagens
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Fabiano e o soldado amarelo
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Conflito
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O soldado amarelo prende e agride Fabiano sem motivo, abusa de
seu poder de autoridade policial.
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Espaço
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Bodega ou botequim e cadeia ou prisão.
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Tempo
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Embora não esteja explícito, depreende-se que essa parte da
narrativa aconteceu em algumas horas.
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Narrador
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Onisciente.
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